Das brincadeiras no parquinho ao incidente com o Mustang Amarelo, em que momento os meninos passam a trancafiar seus sentimentos? Como podemos retomar o contato com nosso mundo interior?
Desde 2015, setembro é o mês em que falamos de saúde mental. O mês ficou conhecido como Setembro Amarelo. Talvez nem todo mundo saiba o porquê da cor escolhida, mas ela faz referência à cor de um carro: um Mustang 68.
O Mustang 68 amarelo pertencia a um jovem norte-americano, de 17 anos, que incapaz de lidar com o término de um namoro, decidiu terminar também com a sua vida. O funeral estava cheio de amigos do rapaz e nenhum deles sabia das suas angústias. Filho de dois pais presentes e carinhosos, também não conseguiu encontrar neles ferramentas que lhe permitissem destilar sua dor e arejar sua alma.
Matou-se porque não conseguiu falar sobre si, sobre seus sentimentos, sobre suas frustrações, morreu por não pedir ajuda, morreu por que não se espera que um homem fale sobre sua dor, por medo de parecer vulnerável, por medo de parecer fraco, por medo de parecer ‘feminino’.
Eu sempre fico pensando nessas pessoas e no fato de que um dia foram bebês, criancinhas de colo. Onde a coisa desandou? em que falhamos como sociedade para que um menino acabe com a sua vida por uma decepção amorosa, sem ter nem se dado a oportunidade de pedir ajuda, sem termos nem oferecido um colo para ele?
Do parquinho ao Mustang 68
Enquanto penso nisso, lembro do parquinho cheio de crianças pequenas que costumava visitar antes da pandemia, quando meus meninos eram menores.
O parquinho sempre me levou para um pensamento semelhante ao que descrevi antes: por que as nossas crianças, que brincam agora indiferentes com gravetos, folhas e baldinhos de areia, que pulam, correm e se sujam por igual, daqui a pouco vão se distanciar entre eles, segregando meninos de meninas?
Porque estas crianças vão, em dado momento, divergir nos seus interesses, nas suas condutas, nas suas convicções sobre o que podem e não podem? Na sua noção de cuidado, de diálogo, de empatia, de competitividade, para finalmente se tornarem adolescentes e posteriormente adultos que, dando quase razão a livros baratos e pseudocientíficos de autoajuda, parecem que vieram de planetas diferentes?
Por que aquela menininha que brinca com um gravetinho lá, daqui a pouco será mais solicitada nas tarefas do lar que o menininho do balde?
Porque o menininho do balde entenderá, daqui a pouco, que a vida é uma eterna e inútil concorrência com outros menininhos para ficar à frente deles, e atrás de outros tantos, em um labirinto infinito que promete fama, glória e acesso livre a mulheres que outrora brincavam com ele no parquinho? Será que ele vai se matar aos 17 anos por um desamor? Será ele capaz de matar a sua ex?
Por motivos muito complexo que não caberiam num único texto, esse nosso menininho deve criar, ao redor dos seus 4 anos de vida, uma forte tendência a se identificar com os outros menininhos e, por caminhos sociais muito rudimentares, pode vir a rejeitar aquilo que não faz parte do seu grupo identificado.
Esse processo é o que os manos chamam em inglês, muito elegantemente, de ‘ingroup/outgroup bias’, que não é mais do que eu enaltecer as características e os membros do meu grupo ao mesmo tempo que reduzo e rejeito as características e os membros de outro grupo “concorrente”.
Assim, o nosso menininho irá se interessar mais por outros meninos, se divertir mais na companhia deles, admirá-los. Ele deverá ter apenas ídolos masculinos e se espelhar em figuras masculinas exclusivamente.
Mas não só isso, ele também irá rejeitar, menosprezar e tentar se distanciar ativamente daquilo que remete ao outro grupo, isto é: as meninas e o universo feminino.
Na nossa sociedade, em que as meninas são mais solicitadas nas atividades do lar, mais treinadas para exercer o cuidado com ela mesma (cabelo, unhas, roupa) e com os outros (bonecas que precisam ser alimentadas, trocadas, carregadas), não surpreende que sejam os sentimentos, os afetos e as emoções partes estruturantes do domínio feminino, junto com o cuidado, a empatia, a solidariedade e a cooperação.
As consequências da divisão
Assim, um menino aprende que, para atender a norma social da masculinidade da sociedade e a expectativa das pessoas que convivem com ele, boa parte de seu sucesso em ser bom sendo homem (que é diferente de ser um homem bom) está no seu afastamento do mundo emocional dos outros.
Além disso, o garoto tenderá a trancafiar suas emoções no canto mais profundo e inacessível da sua intimidade, cobrindo depois com galhos de humor autodestrutivo, folhas secas de agressividade explosiva e guardiões severos: um chamado “isso é mimimi” e outro apelidado de “kkkkk” que rebatem toda tentativa de acesso ao local.
Com o passar dos anos, esse menino cresce, se enche de pelos, músculos e certezas. Ele enfrenta a vida do jeito que pode. Iludido, corre atrás do dinheiro, da fama e do poder, seguindo a promessa de que, atingindo algo de sucesso financeiro, físico e sexual, a felicidade tão prometida virá e nunca mais irá embora.
Incapaz de acessar suas particularidades emocionais, tem dificuldade na hora de estabelecer relacionamentos profundos e significativos.
Primeiro a dificuldade emocional se manifesta com os outros homens, com quem tem traumas compartilhados e grandes aventuras vividas, mas de quem conhece muito pouco das angústias e das preocupações que realmente os atormentam.
Ás vezes ele consegue saber só um pouco dos relacionamentos, dores e alegrias de outros homens com quem convive quase a diário.
É muito comum ouvir homens que se conhecem há anos apenas pelo apelido, homens que têm grupos de amizades temáticas que nunca se cruzam: (amigos do futebol que não conhecem os amigos do trabalho que não conhecem os amigos da faculdade). Homens que, conforme a vida anda, deixam as amizades restritas a um período específico, tendo amizades longas e superficiais ou profundas e curtas.
Depois as dificuldades emocionais se manifestam com as mulheres, com quem o primeiro crivo é sexual — “comeria ou não comeria?” —Para, então, determinar os futuros passos.
Divide as mulheres em dignas e vadias, pratica a co-dependência emocional com as primeiras e a irresponsabilidade afetiva (ou o estupro, dependendo do caso) com as segundas. Estabelece um valor de posse e um valor de troca para a sua companheira e se entrega às benesses de um grande homem de família, capaz de conquistar o respeito na firma e incapaz de achar um pano de chão, cortar uma unha de um bebê ou cozinhar um almoço por iniciativa própria.
Talvez o custo mais alto deste processo todo, e a grande perda para esse nosso menininho que alguns anos atrás andava com seu baldinho de areia, seja com ele mesmo.
Um convite para visitar seu mundo interior:
Aprende-se que homem não pede ajuda, não comenta suas emoções e que deve resolver tudo o que der e (mais um pouco) sozinho, sem nem reclamar, apenas se entregando ao vicio e à solidão. E como consequência, este homem acaba se privando daquilo que precisamente torna a experiência de viver neste planeta algo humano: a capacidade de se relacionar com ele mesmo, com os outros e com o planeta de forma plena e responsável.
Deixamos aqui algumas propostas para que a gente possa transformar nossa relação como homens com o nosso mundo interior:
Aproveitemos este setembro amarelo para nos perguntar como as novas gerações estão aprendendo o que deve fazer um homem e o que deve fazer uma mulher.
Embora sempre insistimos em oferecer brinquedos que não apresentem estereótipos de gênero (carrinho pra menino, cozinha pra menina), essa é apenas uma das fontes onde as crianças bebem e entendem o que se espera do gênero com o qual se identificam. Outra boa parte da formação rudimentar de seus conceitos sobre homem e mulher virá da troca com você, pai, irmão, avô ou adulto que a cerca.
Aproveitemos este setembro amarelo para entender que trancar a emocionalidade, a vulnerabilidade é como segurar uma bola dessas de ioga embaixo da água. Talvez seja possível durante um tempo, mas você é o único no planeta que acha que ninguém está vendo seu esforço e seu sofrimento e uma hora a bola vai sair, com mais força, provavelmente da pior maneira possível.
Se dê autorização para errar, analisar e tentar encontrar algo melhor em algum cômodo esquecido da nossa intimidade.
Inicie uma terapia, se possível.
Aproveitemos este setembro amarelo para entender que o ano inteiro deve ser amarelo… e vermelho e azul e verde… e rosa….e cinza, às vezes cinza. Fazer o que? É um pacote. Com coisa boa e ruim. Aprender a lidar com o ruim e com o bom nos traz humanidade e plenitude, afiança as nossas relações, torna a nossa vida mais completa e a nossa saúde física e mental mais em dia.
Olhe pro espelho com os olhos fechados e tente observar: O que você não vê?
Precisa de ajuda urgente? Ligue 188
Com depressão e suicídio não se brinca. Alguém me disse um dia destes que quem comete suicídio, na verdade não quer morrer, só quer matar a dor. Há muitas outras maneiras de calar esta dor e queremos te ajudar.
Se estiver precisando de ajuda urgente, mas não souber com quer falar, você pode contatar o CVV – Centro de Valorização da Vida, nem que seja só pra desabafar. Ligue 188.
O CVV oferece apoio emocional e prevenção do suicídio, por telefone, chat e e-mail, atendendo voluntária e gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo por telefone. O atendimento é 24 horas, todos os dias.
E lembre-se: tente conversar (nem que seja aos pouquinhos) com as pessoas que convivem com você. Aceite ser ajudado e, se puder, procure uma psicoterapia.
fonte: Papo de Homem