Ter uma pequena pilha de revistas playboy em algum canto da casa fez parte da arquitetura do século XX. A publicação não só mudou o imaginário sexual dos homens, como inspirou vários outros ideais que – sem entrar no mérito de serem positivos ou negativos – foram incorporados pelas masculinidades durante décadas e décadas.
Paul B. Preciado escreveu e descreveu toda essa influência da revista em vários aspectos da vida no seu mais recente livro: “Pornotopia – Playboy e a invenção da sexualidade multimídia”. E essa é a conversa de hoje.
Pode ser (e é até mais provável isso que o contrário) que você não conheça Preciado. Ele não é um cara famoso nos jornais, nem nas redes. Porém, para muitos que estudam sexualidade e gênero, Preciado já é um nome e uma leitura indispensável. Há quem diga que o filósofo é o próximo Michel Foucault (e eu concordo).
Dentre os seus livros mais importantes estão o Manifesto Contrassexual e o Testo Junkie: Sexo drogas e biopolítica na era farmacopornográfica.
Numa noite de insônia, vendo uma velha entrevista de Hugh Hefner, fundador da Playboy, falar sobre a importância da arquitetura no seu império, Paul começa a investigar e mergulhar no tema, que resulta neste livro perspicaz e interessantíssimo.
Preciado não está pensando a Playboy apenas como uma revista de conteúdo erótico ou como uma empresa transnacional, mas como uma parte chave da construção do imaginário da segunda metade do século XX em diante. Construção essa que passa pela sexualidade e vai além, chegando inclusive em tendências de arquitetura e inovações midiáticas.
Hugh Hefner e as outras páginas da playboy (aquelas que não tinham as coelhinhas) fundaram o ideal do solteiro que mora numa caverna tecnológica e, de certa maneira, disseminaram a cultura de realities, de exposição da vida privada e do homeoffice.
[Nem este texto nem o livro são sobre idealizar e dizer que essas mudanças foram melhores ou piores para a época, é sobre entender que elas aconteceram.]
Eu sou uma millenium dos anos 1990, brasileira (claro) e sempre pensei na Playboy como uma revista que teve seu ápice nos 1980, 1990. A revista me soava como farinha do mesmo saco da pornochanchada, Banheira do Gugu e a sessão privada das locadoras de filmes. A juventude às vezes engana. Essa história começa muito antes, num mundo recém saído da segunda guerra.
A pornografia e a guerra
Durante a segunda guerra, os soldados levavam consigo revistas de Pin-ups para ser o alívio eróticos entre combates. À época, as revistas eram almanaques pintados com aquarelas realistas.
Durante os anos da segunda guerra e de alistamento massivo masculino, as mulheres estavam tendo maior presença nos trabalhos, na vida pública e os EUA, sob a liderança do senador Macarthy, começaram a uma política de retomada da disciplina combatendo a “dissidência sexual”.
“Entre 1941 e 1945, mais de 9 mil homens e mulheres estadunidenses foram diagnosticados como “homossexuais” e submetidos a curas psiquiátricas”. (trecho do livro)
Essa política foi uma perseguição brutal a homossexuais, bissexuais, transexuais, mas seus efeitos também respingaram sobre a masculinidade heterossexual: um “homem de verdade” dos anos 1940 e 1950 tinha de casar e formar família. A demora ou recusa ao casamento era motivo de desconfiança para os vigilantes.
“O estado voltava seus instrumentos de espionagem, vigilância e tortura contra seus próprios cidadãos, tornando o corpo o gênero e a sexualidade como expressões literais de fidelidade nacional.”(trecho do livro)
Em 1953 a Playboy surge com a sua primeira edição histórica, carregando fotos de Marilyn Monroe em roupas sensuais (preto e branco na capa e colorida por dentro). No editorial, desponta uma nova possibilidade de legitimar a masculinidade (heterossexual) fora do lar suburbano e do casamento.
Ser homem de 1900 a 1950, entre a primeira e a segunda guerra – numa sociedade pautada pelo comportamento bem parecido entre massas de uma mesma classe – era sinônimo de ser um soldado (literalmente ou simbolicamente): o pai de família, rígido, disciplinado, que faz parte da massa do sonho americano, que cumpre seu dever de defender a pátria e delega os cuidados do lar a sua esposa.
Nenhum modelo serve a todos os corpos e, na tentativa de reivindicar uma segunda alternativa,
“é possível ler os editoriais dos primeiros números da Playboy como um autêntico manifesto pela libertação masculina da ideologia doméstica. No entanto, essa liberação não consistirá, como no caso do feminismo, no abandono da domesticidade, mas, paradoxalmente, na construção de um espaço doméstico especificamente masculino”. (trecho do livro)
Algumas das publicações mais icônicas da revista giram em torno do apartamento de solteiro, da penthouse dos sonhos que seja um espaço caseiro e íntimo para o homem heterossexual que domina seu espaço e que quer fazer dele um oásis que sirva a sua individualidade.
Vamos lembrar que o nome da revista vem do seu significado fora dela: ser um playboy é ser um “adolescente de qualquer idade”, um homem que brinca, que joga, que se interessa por luxos, produtos sofisticados, eventos sociais e poucos compromissos para além de si mesmo.
O ideal de “soldado” abre espaço para o ideal de “espião” que seria cristalizado na figura de James Bond alguns anos depois, em 1962.
O espião é o homem solitário, urbano, com uma vida dupla, cercado por brinquedos tecnológicos que, ao invés da disciplina e rigidez, busca flexibilidade para defender seus próprios interesses em meio a prazeres e companhias etéreas.
“A cobertura de solteiro trata-se portanto de um centro de vigilância com aparatos tecnológicos para produzir e reproduzir ficções midiáticas. O prazer, já veremos, não será senão um dos efeitos colaterais do tráfego contínuo de informações e imagens”.
A sexualidade Playboy
Preciado olha para a história como uma fotografia panorâmica e mostra que a influência da Playboy e de seus ideias espalham pensamentos de autossuficiência, individualismo, indisciplina e hedonismo. Sendo assim, o erotismo, as fotos sensuais da revista, não resumem seu impacto. As fotos seriam parte, uma consequência, desse modelo de masculinidade que busca a brincadeira e o prazer sempre à mão, sem ter que sair de casa ou levantar da cama.
A playboy mudou o mundo masculino para além da inspiração masturbatória, mas inegavelmente, ela mudou e muito essa parte da vida (e não só de homens).
Eu falei lá no começo que Preciado pode ser considerado um novo Foucault, certo? Sem entrar em meandros muito difíceis, queria contextualizar que essa comparação é feita por existir uma certa complementariedade do trabalho que Foucault fez explicando a História da Sexualidade nos anos 1970 e o que Preciado faz hoje em dia, se debruçando sobre o sistema sexo gênero (e suas incoerências) na era da conectividade e da biotecnologia (ou “farmacopornográfica”, como chama Preciado).
A popularização e o vai-e-vem das revistas com conteúdos eróticos muda o que Foucault chamava, então, de heterotopia (hétero = distinto + topia = localidade) para criar pornotopias (utopia sexual, transportável, pós-doméstica e urbana).
Heterotopias (que nada tem a ver com heterossexualidade) seriam portanto os “outros lugares”, espaços de sonho (ou de exceção) em que as realidades eram diferentes da norma: o bordel, o clube para homens, a barbearia. Acontece que com o fluxo de mídia (seja impressa ou digital) de lá pra cá, nasce então a pornotopia, o espaço do erótico que funciona em qualquer lugar, basta abrir a revista (ou o celular).
“A playboy se transformaria na primeira pornotopia da era da comunicação de massas”. Ao abrir a revista, se desdobrava a separação entre público-privado: levar ao público o corpo feminino em suas representações íntimas e privadas, ao mesmo tempo que se faz privado e íntimo o uso da revista que está publicada.
(No sentido literal, a pornografia não está relacionada a genitálias ou ao ato sexual em si, mas a trazer a público o que é privado ** qualquer semelhança com as redes sociais não é mera coincidência).
A playboy e o vício em masturbação
Quando se fala sobre compulsão em pornografia e masturbação, a facilidade de transportar conteúdos eróticos de lá pra cá, de fazer com que eles sejam onipresentes em espaços públicos e privados, é um fator associado ao vício.
Se a playboy permitia isso no século passado, agora, os conteúdos através dos celulares são ainda mais abundantes, impressionantes, gratuitos e carregáveis, afinal, estão no celular. Esse contexto faz com que o prazer instantâneo e individual seja extremamente fácil de se obter e portanto, mais difícil de ser moderado ou controlado.
Como bem disse o psicanalista Christian Dunker, em seu vídeo sobre vício em pornografia, o erotismo ou o interesse pelo erotismo não é um problema em si. O interesse é sinal de um desejo que está vivo em você e que faz parte da vida humana. O que podemos e devemos nos pergunta é: quais erotismo estamos cultivando, como estamos fazendo e por quê? (ou porque só este).
Numa análise pessoal eu ainda diria que a influência da playboy sobre o vício da masturbação não está tão relacionada às fotos de seios e bundas, quanto ao ideal de autossuficiência, acomodação e mínimo esforço.
Assim como Hefner passou a vida evitando sair da cama e tirar o pijama de seda, é o medo masculino de sair da concha, de enfrentar a rejeição, de ser vulnerável ou de não corresponder às suas próprias expectativas (assim como outros fatores que engatilham ansiedades e medos) que alimentaria boa parte da tendência à compulsão por um prazer cômodo.
As coelhinhas da playboy são as garotas logo ali.
Estamos usando os anos 1950 como ponto de virada. Se, para os homens, a Playboy havia trazido algumas novidades, para as mulheres, o feminismo e a pílula anticoncepcional mudaram muitas outras.
Garotas adiam noivados para estudar, entram no mercado de trabalho e, com a pílula contraceptiva, podem até pensar em iniciar a vida sexual antes do casamento. A divisão entre a boa moça (virgem) e a mulher da vida (sexualmente ativa e puta) deixa de ser tão rígida.
A playboy se vale dessa mudança de contexto ao desenvolver um dos apelos dos seus ensaios sensuais: a coelhinha do mês poderia ser “a garota ao lado, a vizinha, a colega de trabalho”… bastava uma certa perspectiva.
Mais uma vez, sem fazer análises morais ou de valores, a Playboy desencadeia uma transposição da sensualidade que só era possível no bordel para então ser possível, num jogo de mostra-esconde, em várias casas “comuns”, “de família”.
Fazer da garota ao lado o ícone sexual, não foi, de maneira nenhuma, um processo que tirou o tabu sobre as trabalhadoras sexuais. Não. Para o ideal do playboy, convinha que o sexo estivesse a disposição logo ali na porta, ou na janela da vizinha, mas não que essas “boas garotas” fossem trabalhadoras sexuais, prostitutas.
Não. Para o solteiro James Bond com seu belo apartamento cheio de aparatos, o sexo pago soa até um pouco humilhante, quase como sintoma de uma falta de habilidade.
O reality e a pornotopia
Se aqui no Brasil a gente conhece bem a revista, os acessórios com estampa de coelhinho e algumas produções audiovisuais da playboy, nos EUA, muito antes do PayperView, Hefner inaugurava game shows e realities na TV americana. Garotos brincavam em “disneylândias sensuais” e esse sonho era então vendido para uma massa de homens que poderiam desfrutar dessa utopia-sexual não só pela revista, mas indo a um clube ou hotel Playboy.
Pensando sempre na arquitetura, Preciado mostra como esse ideal de inverter e misturar o público/privado se refletia em algumas casas que marcaram época na metade do século XX: paredes de vidro e ambientes abertos refletiam a exposição da vida privada que se anunciava à época mas que não alcançou seu ápice na playboy.
O ápice de levar o privado a público se vê não só no “erotismo’ multimídia, mas BBB ou no show do eu que fazemos todos os dias com o uso das redes sociais.
Hefner e as tendências de homeoffice
Hefner comandava seu império pornotópico de um jeito diferente dos engravatados que apareciam de terno em escritórios sisudos. Ele fazia questão de não sair de casa e trabalhava em um grande tapete ou sobre sua cama, vestindo pijamas de seda.
“A separação da residência e do lugar de trabalho, que tornou possível o uso generalizado do automóvel, era o traço dominante da vida urbana/suburbana nos EUA depois da guerra. Atacar essa separação era, na realidade, atacar não somente a estrutura da cidade estadunidenses como também o fordismo e sua compreensão moral da relação entre trabalho, produção e prazer.” (trecho do livro)
Hefner, em sua rebeldia contra a sociedade de massificadora dos pós-guerra, foge do fordismo e, de certa forma, inicia na playboy um certo embrião da cultura de startups e do homeoffice, tão comum hoje em dia.
Ele leva sua casa para dentro da estrutura playboy e a empresa para dentro de casa. Permite e incentiva joguinhos e prazeres entre os funcionários (incluindo o consumo de drogas), assim como cobra deles atenção fora do horário comercial. Essa confusão de trabalho, lazer e descanso que se torna icônica com a playboy, nem sequer nos causa estranheza atualmente.
Ler Preciado tem sido um dos gratos prazeres para mim nessa pandemia. Suas ideias são inovadoras e ele não precisa falar difícil para ser brilhante. Suas colocações são analíticas, perspicazes, críticas e nada moralistas.
A este ponto do texto me cabe dizer que Paul B. Preciado não é, ele mesmo, um James Bond do topo da pirâmide da heteronormatividade. Não, senhores.
Preciado é, digamos assim, um agente duplo, rebelde e flexível. Em Testo Junkie você pode ler e acompanhar (quase como um reality escrito), como Paul B. Preciado, um homem trans, queer e que odeia os rótulos, se submete a uma auto-intoxicação-experimentação de testosterona encurtando o “Beatriz” de sua primeira certidão para um “B” de nome do meio (meio de um percurso).
Eu como mulher fui muito influenciada pela Playboy. Além de ver ali um ideal de beleza, do que é desejável para os homens, também via ali um objeto de desejo e inconformidade porque eu queria que também estivesse disponível para mim toda aquele erotismo a mão e que eu pudesse seguir esse ideal masculino de hedonismo e “diversão em primeiro lugar”.
Claro que todas essas influências vem carregadas de problemas, de padronizações e ideais inatingíveis que nós não necessariamente éramos capazes de enxergar à época.
Hoje, tomar consciência dessas influências, dos seus significados, suas causas e consequências é parte do processo. Entender o que nos formou é chave para elabora o que queremos formar em nós daqui para a frente.
Agora fica aqui a pergunta: Como a playboy impactou a sua vida, a sua construção da masculinidade e da sexualidade? Olhando pra trás, como você quer direcionar esses processos daqui pra frente?